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Entrevistas

Sara Crispim: A ansiedade “é só um sintoma” de que precisamos de mudar

9 Dez 2023 - 12:32

Sara Crispim: A ansiedade “é só um sintoma” de que precisamos de mudar

Como psicóloga, Sara Crispim decidiu dedicar-se exclusivamente ao acompanhamento de pessoas com ansiedade. A certa altura decidiu trabalhar só com atendimentos online e lançou o podcastA voz da ansiedade”. Agora, lança o livro “A ansiedade não manda em mim”, uma obra que não quer que fique apenas na estante e que deseja ver usada como uma ferramenta para alterar hábitos de vida.

Em entrevista ao Viral, a psicóloga explica que a ansiedade é muito mais complexa e tem raízes bem profundas na história de vida de cada pessoa que sofre com ela. Inclusive na história da própria Sara.

O que a levou a interessar-se por este tema em particular na área da Psicologia (a ansiedade)?

Ao longo da minha carreira, sempre senti que havia uma grande pressão para os psicólogos saberem dominar tudo, todas as problemáticas em crianças, adultos e idosos. Sentia essa pressão desde o estágio: tínhamos de saber tudo e sobre tudo.

Vi muitos colegas a viverem com essas inseguranças e senti que, para mim, não fazia sentido alimentar essas inseguranças. Queria ser boa numa área, saber muito bem como ajudar as pessoas nessa área, em vez de andar a procurar conhecimento em várias áreas e não dominar nenhuma.

Por isso, quis tornar-me especialista numa área e o meu trabalho é completamente focado neste tema, o meu estudo e todas as minhas formações são somente dedicados a esta área.

Já era psicóloga online antes da pandemia e, como os meus primeiros clientes tinham esta problemática da ansiedade, acabei por me apaixonar por esta perturbação que é muito prevalente na sociedade. 

Felizmente, nem todas as pessoas vão ter uma perturbação do comportamento alimentar, mas todas as pessoas, sem exceção, já sentiram ansiedade. Só que é algo muito banalizado, que não é muito bem compreendido. Tal como lembro no meu livro, se recuarmos no tempo, antigamente dizia-se que eram pessoas que tinham problemas de nervos.

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Sempre senti que a ansiedade era um pouco incompreendida no seu todo, tanto na forma como se banaliza, assim como é, muitas vezes, referenciada como sendo apenas negativa e ela não tem só uma componente negativa. 

A ansiedade tem a particularidade de ter um lado bom, necessário em alguns momentos da vida, e o lado mau, que é patológico. A partir de que momento é que a ansiedade se pode tornar uma perturbação de saúde mental?

ansiedade

Posso fazer aqui uma comparação com a saúde física. Por exemplo, temos uma dor de cabeça que, realmente, é incomodativa, mas não nos limita de trabalhar, nem de fazer as nossas atividades de vida diária. Mas, se a dor de cabeça nos impedir de trabalhar, de estar com pessoas, se nós só queremos ficar no quarto de luz apagada, ela torna-se limitadora.

A ansiedade é uma perturbação quando confere sintomas físicos limitadores que nos impedem de ter qualidade de vida no dia a dia, quando nos leva a ter pensamentos intrusivos que comprometem muitas vezes a relação connosco próprios, a relação com os outros, quanto compromete o nosso trabalho e a vida familiar, então aí já é considerada uma perturbação. Digamos que é algo que não é temporário, permanece ao longo do tempo, e que carece de uma intervenção específica. 

Outro exemplo: até podemos sentir ansiedade antes de fazer o exame de condução, é normal que aconteça, mas se essa ansiedade se mantiver mesmo depois do exame de condução, se nos limitar [na condução] e se traduzir numa tensão com preocupações excessivas, com sintomas físicos limitadores, com pensamentos intrusivos, então, já estamos perante uma perturbação da ansiedade que carece de uma intervenção.

De que sintomas físicos estamos a falar? Como é que a ansiedade se pode refletir no corpo?

É importante sublinhar que é necessário consultar um médico em primeiro lugar, já que há muitos sintomas comuns a outras problemáticas de saúde física. É importante excluir tudo o que possa ser de causa física e possa ser considerado causa emocional.

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Estamos a falar de dores de cabeça, náuseas, vómitos, diarreia, queda de cabelo, erupção cutânea, pressão no peito, coração acelerado. Por exemplo, uma diarreia pode ser um problema gastrointestinal, por isso é importante primeiro descartar as causas físicas. 

Quando não se consegue encontrar nenhuma causa física, então é porque a causa é emocional.

Só que as pessoas têm alguma dificuldade em aceitar que a ansiedade é capaz de produzir sintomas como a erupção cutânea ou a queda de cabelo, porque é algo tão físico que é difícil associá-lo a algo que não é palpável como uma emoção.

E ainda causa mais ansiedade não saber qual é a causa dos sintomas …

Sim e também por não saber o que fazer. Se temos uma constipação, sabemos mais ou menos o que fazer nessa situação, mas na ansiedade as pessoas sentem-se perdidas.

Antes da pandemia falava-se de saúde mental, mas não tanto como se fala agora. Por isso, era difícil as pessoas perceberem primeiro o que era a ansiedade – pensavam que era uma pessoa que andava sempre à pressa e que quer tudo para ontem – e depois que tem este caráter tão físico ao nível da sintomatologia.

A partir da pandemia, sentiu que houve uma mudança na forma de olhar para as questões da ansiedade?

Sim, completamente. Já era psicóloga online antes da pandemia e senti uma mudança porque o facto de, durante a pandemia, termos sido obrigados a estar nas nossas casas, a estar com os nossos próprios pensamentos e a olharmos para dentro fez com que muitas pessoas parassem e vissem, pela primeira vez, que sentiam ansiedade.

Já falou dos sintomas físicos e, em termos práticos, como é que a perturbação de ansiedade influencia o modo de vida de uma pessoa?

Vamos pensar num dia a dia hipotético de uma pessoa com ansiedade. Acorda de manhã logo com um nó no estômago só de pensar no trânsito que vai ter de enfrentar para ir trabalhar e até sai de casa sem comer. Começa o dia já com sintomas físicos a pensar no que vai ter de enfrentar durante o dia, que até pode ser só a antecipação de coisas que podem nunca chegar a acontecer: o trânsito, o chefe chamá-lo ao gabinete, o colega de trabalho ser mais ríspido.

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Está no trabalho a sentir a pressão para a produtividade. Pode até nem ser exercida, mas a pessoa é que sente que tem de provar alguma coisa.

À noite, em vez de ler um livro, passa o serão a fazer scroll no Instagram só para não se confrontar com os pensamentos. Às vezes, são pensamentos aleatórios, intrusivos que não têm qualquer fundamento e podem custar uma noite de insónia.

E durante o dia, o ato de almoçar e de jantar pode ser sacrificado porque a pessoa sente que nada passa pela garganta.

É um sofrimento diário a nível físico e mental, gera um cansaço físico e emocional porque a cabeça não para e não há um sono reparador.

A ansiedade também afeta a nossa autoestima e a nossa autoconfiança, perturba a forma como nos relacionamos com a família, com os amigos e com colegas de trabalho.

E como é que o livro “A ansiedade não manda em mim” pode ajudar as pessoas a lidarem com a ansiedade?

Podemos dizer que o livro está dividido em três partes. A forma como o desenhei foi um pouco para abordar o que é a ansiedade, como se manifesta e como se combate. 

Numa primeira parte dou a compreender o que é a ansiedade. A pessoa pode fazer uma autoanálise para perceber se pode ser considerada uma pessoa que sofre de ansiedade normal ou patológica. Tem muitos exercícios práticos nessa componente, com os quais a pessoa faz uma autoanálise da história de sua vida e até ter alguns insights, lembrando-se de algum acontecimento a que não deu importância, mas que está na origem daquela ansiedade ou da baixa autoestima.

Depois há uma parte em que desmascaro a ansiedade. As pessoas apercebem-se de que muitas das ações do dia a dia acontecem devido à ansiedade. Por exemplo, às vezes dizemos com orgulho que somos perfecionistas, mas isso pode ser uma manifestação de ansiedade, assim como a procrastinação. O livro mostra que a ansiedade não é apenas ter sintomas físicos e pensamentos intrusivos, mas também se reflete nas ações.

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Depois, tem exercícios e uma parte de aplicação, de mudança de hábitos, que é importante as pessoas introduzirem no quotidiano. Dá ideias de como podem mudar algumas coisas na vida para que esta seja vivida de forma mais leve e com menos ansiedade. Mostro o benefício de apanhar sol, da alimentação consciente e também dou ferramentas sobre como agir perante uma situação inesperada. Por exemplo, ao ficar desempregado ou como reagir perante o fim de um relacionamento.

O quinto capítulo é muito importante para mim porque falo de coisas que muitas vezes as pessoas não querem ouvir em consulta, nomeadamente do momento em que temos de abraçar uma recaída. 

Afinal, se existe uma recaída, significa que já existiu um avanço na terapia, um avanço na mudança. Um processo de mudança é como andar de bicicleta, também tem as suas quedas.

O objetivo é que a ansiedade não mande nelas. Sabemos que durante a vida vamos ter de lidar com situações inesperadas, mas quando acontecem coisas que não controlamos, temos de aprender como é que podemos lidar com elas de forma a não levarem a uma crise de ansiedade ou de um ataque de pânico.

Só que não há forma de as pessoas implementarem estas estratégias se não fizerem mudanças base, porque a ansiedade é só um sintoma, a ansiedade não é o problema. Se as pessoas não fizerem mudanças estruturais na sua vida não podem esperar que, só tratando os sintomas, a ansiedade desapareça.

A pessoa tem de permitir-se a experimentar. Este livro não é para ficar na estante, é para a pessoa sublinhar e aplicar na vida.

Podemos olhar para a ansiedade como uma condição crónica, que vai e vem na vida? A ideia é não deixar que ela nos domine …

Não podemos dizer que a ansiedade vai desaparecer da nossa vida, temos de perceber o seu caráter e a importância que tem na nossa sobrevivência. O segredo não é eliminar a ansiedade, é, quando a ansiedade nos visitar, termos as estratégias e as ferramentas certas para saber como podemos geri-la.

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Por exemplo, eu tenho ansiedade social, por motivos profissionais sou obrigada a expor-me e essa exposição ajuda-me a que a ansiedade não sabote a minha vida. Eu sei que ao expor-me a ansiedade me vai visitar, mas eu hoje tenho técnicas e ferramentas para perceber que ela não me pode limitar, então ela não manda em mim.

Hoje sofro de ansiedade social porque no passado sofri de bullying e saber quais são os nossos gatilhos ajuda a ter consciência do porquê da nossa ansiedade.

A ansiedade é uma condição sentida de diferente forma por homens e mulheres? Está mais associada ao género feminino?

Na minha experiência, depende muito da história individual de cada pessoa. Podemos ter uma mulher com uma história de vida que não tenha tido experiências traumáticas ou geradoras de ansiedade e um homem que sim.

O que noto é que, depois do que vivemos na pandemia, passou a haver muito mais procura por parte dos homens e em consulta homens e mulheres sentem a ansiedade exatamente da mesma forma.

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Por exemplo, fala-se muito do baby blues no pós-parto em relação à mulher, mas já recebi muitos homens que sofreram muito emocionalmente no pós-parto. Só que não se falava muito sobre isso, porque muitos homens também não falam sobre o assunto.

Acho que a história de vida, independentemente do género, é aquilo que é crucial para perceber qual é o fundo da ansiedade de uma pessoa.

Em consulta tento traçar a linha da vida do cliente desde a infância, tocando nos eventos mais importantes, tanto o que foi positivo, como o que foi negativo, porque isso é fundamental para perceber porque a pessoa sofre de ansiedade. 

Ou seja, para além das condicionantes da vida contemporânea, a pessoa também transporta consigo uma bagagem que a torna mais ou menos suscetível ao desenvolvimento de um quadro de ansiedade? 

Se formos pensar na origem da ansiedade, temos em primeiro lugar uma coisa que não controlamos que é a componente genética e hereditária. 

Depois temos uma série de ingredientes que contribuem para o seu desenvolvimento, como a nossa história de vida, os nossos traumas, as mudanças significativas, o uso de substâncias, tudo o que gera um potencial risco de a pessoa desenvolver ansiedade.

Por exemplo, uma coisa básica é a educação que recebemos dos pais, se foi uma educação ansiogénica, se os pais estavam sempre a antecipar que, se fizéssemos alguma coisa, podíamos cair e magoar-nos. Esta forma de pensar que nos é passada é uma crença que torna o adulto numa pessoa que está sempre a antecipar o pior de cada situação por achar que assim se pode preparar melhor para uma eventual surpresa [desagradável]. 

9 Dez 2023 - 12:32

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